terça-feira, 13 de outubro de 2020

 



REFLEXÕES


Um novo dia despontava; o relógio não se compadecera e, como sempre, tocara, à mesma hora, despertando-o do sono profundo em que se encontrava e que só tardiamente conciliara.

Carlos resmungou algo entre dentes, contra aquele relógio que o tirava de um belo sono e sonho também. Isso tinha a ver com o seu estado de espírito e a sua pouca vontade em recomeçar mais um dia de trabalho.

Naqueles momentos seguintes ao seu despertar, Carlos deu por si a fazer uma retrospectiva do que era a sua vida nos últimos tempos e a reviravolta que a mesma sofrera em tão pouco tempo. Tudo lhe corria mal, quer pessoal, quer profissionalmente, o que o fazia sentir-se frustrado em relação a tudo aquilo que perspectivara para a sua vida.

Considerava-se e era tido como um médico dedicado, um cirurgião de renome e qualificado, mas um pequeno deslize imperdoável a um médico de seu gabarito, num dia menos bom, atirara-o para o banco dos réus, com um processo por negligência profissional, algo que nunca pensara poder vir a acontecer-lhe, tal era o zelo que colocava no seu trabalho. Um processo do qual a muito custo se conseguiu ilibar, pois a inveja existente nos hospitais é implacável, uma constante e oportunista, com tudo e com todos e ele não poderia ser considerado uma excepção nela, apesar da sua folha de serviços ser aquilo que se poderia designar por exemplar.

Contudo, tal situação fazia-o sentir-se mal; sentia-se mirado de lado e observado por “sete pares de olhos”, sempre que executava uma cirurgia, o que não lhe agradava sobremaneira, pois esses olhares eram, por si só, uma acusação permanente, de uma falha passada e ocasionavam, por vezes, vacilações inusuais e indesejáveis nele.

Tudo acontecera num dia em que Cristina , sua mulher, lhe transmitira friamente que queria o divórcio e que o iria abandonar, depois de vinte anos de casados, sem que aparentemente tivessem tido qualquer desentendimento, salvo algumas pequenas questões próprias, segundo a sua opinião, de qualquer casal comum. Ele ficara petrificado com tal informação, já que nunca lhe ocorrera que Cristina se pudesse sentir mal no casamento, pois sempre lhe tinha proporcionado uma vida faustosa, de bem-estar e sempre a apoiara em tudo. Esquecera-se , no entanto, talvez do mais importante: Cristina precisava de muito mais, além de bens materiais. Ela sentia falta de carinho, de amor, de amizade e companheirismo.

Carlos, intimamente, sentia-se culpado por tal situação, pois a dedicação extrema que votara ao hospital e aos seus doentes, quase não lhe deixava tempo para acompanhar sua mulher e a filha de ambos, a sua querida Anabela, o que, não diminuía em nada o amor que por ambas sentia.

Porém, Carlos não sabia exactamente o que pensar, o que fazer, para remediar tanto mal que ocasionara, ainda que involuntariamente a Cristina. Ele continuava a amá-la, como quando se casaram. Por mais voltas que desse ao seu pensamento, não encontrava aquela que ele supunha ser a melhor solução. Conversar de novo com ela? Logicamente que, racionalmente, seria a primeira coisa a fazer, não obstante a conversa tida anteriormente e que o tinha deixado um farrapo, sem acção, nem reacção. A estupefacção que dele se apoderara não o tinha deixado proferir palavra.

Carlos sabia também, que Cristina desconfiava de suas eventuais escapadelas conjugais e seria essa uma das muitas razões da sua atitude. A sua reflexão continuava: pedir-lhe-ia perdão, prometeria ter mais atenção com ela e com a filha, levá-la de férias se preciso fosse, mas naquele estado, só, isolado e a sentir-se a desfazer por dentro não era forma de estar que ele apreciasse ou desejasse.

Se bem o pensou, assim o fez. Pegou no telefone e instintivamente liga para Cristina, que atendeu estremunhada:

-Estou sim. Aconteceu alguma coisa Carlos?

- Claro que sim Cristina. Precisamos conversar de novo.

- A esta hora da manhã? Já viste bem que horas são?

Só então Carlos reparara que nem atentara nas horas, a que aquele bendito despertador, invariavelmente, o acordava. Sentiu-se um idiota, um menino de escola, apanhado em falta.

- Peço desculpa Cristina. Tens razão. Mas apenas queria dizer que te amo e não me conformo com a nossa situação. Sei que prevariquei, tenho pensado e repensado na nossa situação, facto que nem me deixa dormir, descansar e até trabalhar como deveria. Queria pedir-te também que me desses uma nova chance de me redimir perante ti e perante nossa filha. A minha vida tem sido um inferno nos últimos tempos e não é por puro egoísmo que te peço: volta, por favor. Amo-te.

Cristina, no outro lado da linha ficou silenciosa. Aquela atitude de Carlos tinha sido para ela completamente inesperada e surpreendente. Não sabia o que lhe responder, mas também não queria dar-lhe esperanças vãs de imediato. Talvez o sofrimento o fizesse ver o quanto ela sofrera e penara por noites de solidão, sem ter com quem falar, com quem desabafar, ou apenas amar.

Assim, limitou-se a responder:

- Carlos prometo que vou repensar a nossa situação, mas claro que poderemos conversar. Somos adultos e como tal nos deveremos entender. Temos uma filha linda, que não pode sofrer e viver sem ti, como sei que ela está a sofrer pela tua ausência. Mas quando conversarmos tens de ter em conta que, o que aí for dito, é irreversível. Só a ti compete ver até que ponto podes mudar o teu comportamento familiar e para uma possível reconciliação entre nós, isso é o ponto fundamental. Podes marcar essa conversa, para quando te for mais conveniente. Tentarei conciliar os meus horários com os teus.

Carlos não pensou duas vezes e respondeu de imediato:

- Hoje não tenho nada urgente no hospital. Por isso é só o tempo de me preparar e vou aí ter contigo. Poderemos almoçar juntos. A minha decisão é esta. Até já.

Antes que Cristina tivesse oportunidade de ripostar, Carlos desligou, levantou-se de um ápice, como se por abelhas tivesse sido picado, tomou um duche rápido, arranjou-se e saiu rapidamente para ir ter com sua mulher. Não poderia perder esta oportunidade de estar com ela, de lhe falar e de se sentir perdoado, para que pudesse voltar a ser o mesmo de outrora.

Cristina, por seu lado, sorriu com a atitude de Carlos. Sempre impulsivo. Mas ela também o amava e sabia que aquela atitude dela tinha sido acertada, pois fizera despertar no marido os sentimentos que ela sempre soubera que ele nutria por ela. O vulgar tratamento de choque, para dois seres que se amam e que, pela força das circunstâncias e problemas da vida, tinham estado afastados, mas que agora se reencontrariam.

O amor sempre faz superar as dificuldades. Assim aconteceu com Carlos e Cristina que, juntos com Anabela reencontraram a harmonia do seu lar e, consequentemente, a estabilidade emocional e profissional que todos precisavam.


Natália Vale


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